O mês era Dezembro e o ano 2018, data essa em que me peguei distraído de um foco recente da época: otimizar meu tempo e ser mais produtivo. Para isso resisti à Black Friday e não comprei uma TV nova e nem um console de vídeo game para acompanhar. Foi então que notei um fato importante: apesar de ter me esforçado, um tal de Brawl Stars havia acabado com meus planos.

Para mim era óbvio que comprar um PlayStation 4 para jogar um Red Dead Redemption se tornaria uma cilada, mas havia esquecido do poder que um “simples jogo para celular” para desvirtuar a minha atenção. Pior ainda, vira uma fuga do estresse cotidiano.
Na busca por entender esse meu comportamento, comecei a reparar nas estratégias utilizadas pela empresa Supercell para literalmente envolver o jogador em um sistema que estabelece a necessidade de jogar diariamente.
Histórico
Não é de hoje que tenho problemas com jogos (apenas de vídeo game, felizmente). Uns 2 anos antes de eu começar a correr, minha rotina era um tanto quanto caótica e as noites e madrugadas reservadas para jogar online no PlayStation 3.
Com mudanças, algumas delas bruscas e outras mais sutis, consegui me livrar do vício que já não me fazia bem, tanto em termos de produtividade quanto de saúde. Porém, antes de me livrar do console, o primeiro jogo que joguei da Supercell, Clash of Clans, foi o primeiro indício de que um jogo de celular poderia ter o mesmo efeito que um de console.
Sempre existiu na minha cabeça um certo preconceito aos jogos de celular, boa parte influenciado por amigos que esboçam a mesma reação e desdém, dando mais valor para jogos para consoles de vídeo game ou computador. Mas como o jogo de celular pode ser “apreciado” sem envolver uma TV ou mais gente, digamos que é fácil se tornar algo que ninguém percebe e só você consegue notar quanto tempo está passando em um jogo.
Devo confessar que não me lembro muito bem a ordem dos acontecimentos, mas um bom tempo depois de ter parado com o Clash of Clans, apareceu outro jogo (adivinhe de quem!) chamado Clash Royale, que sem dúvida alguma tirou horas diárias por meses a fio.
Depois larguei mais um desses vícios, em um daqueles dias em que você simplesmente fala “chega” e deleta o jogo do seu celular. E isso me lembra de outra coisa, o fato de que todos os jogos da Supercell são gratuitos. Isso será relevante mais pra frente.
Curiosidade: enquanto escrevia esse post me lembrei que também já joguei bastante outro jogo desenvolvido por eles, chamado Boom Beach. Talvez o fato dele não ter estourado em popularidade como os outros tenha influenciado, mas isso serve de prova para o meu desconhecimento da ordem dos acontecimentos. E também é um sinal de que o problema talvez seja maior do que eu pensava (estou literalmente colocando esse pensamento que acabou de vir à minha cabeça).
Como esse texto está entrando demais no que acontece na minha cabeça, vamos voltar ao foco. O objetivo é avaliar Brawl Stars, o jogo mais atual da Supercell que foi lançado em Dezembro de 2018. Não por acaso, até porque todo mundo tem mais tempo no final do ano, e principalmente, as crianças estão de férias da escola.
A estratégia da Supercell
Antes de avaliar a maneira utilizada dentro do jogo para manter o jogador fisgado, é importante ressaltar alguns números. Ainda não saíram os ganhos de 2018 enquanto fazia esse artigo, mas em 2017 a Supercell teve um faturamento de 2 bilhões e lucro de 810 milhões de dólares em 2017. Estamos falando dos jogos gratuitos mais baixados, seja no Android ou iOS, e também dos mais rentáveis com compras dentro do jogo.
Agora que vimos não se tratar de amadores, mas dos melhores do mundo em ganhar dinheiro, podemos entrar nas minúcias que fazem do Brawl Stars, assim como todos os outros jogos, fáceis de se viciar e jogar cada vez mais.
Funcionamento do jogo

A jogabilidade dos títulos da Supercell são bastante simples, e em apenas um dia você consegue pegar o jeito da coisa e embalar no progresso do jogo.
Brawl Stars utiliza a tática de sucesso de partidas curtas, que dão a impressão de um jogo casual, mas que no fundo é para dar essa sensação e te fazer jogar várias partidas consecutivas. Até mesmo pela gratificação instantânea após uma vitória, ou a vontade de virar o jogo após uma derrota.

São vários mapas e modos de jogos diferentes, que são atualizados periodicamente para manter você atento, além de beneficiar com uma “medalha especial” para você abrir um baú com moedas e pontos para evoluir cada personagem. Não digo isso com o intuito de fazer um tutorial, mas sim mostrar as camadas que são colocadas no jogo para entreter o jogador.
Como mapas diferentes e modos de jogos diferentes são oferecidos, ao invés de atualizar todos de uma vez, eles utilizam uma estratégia sensacional e liberam ao longo do dia. Isso significa em no mínimo 4 notificações por dia para avisar que um novo modo de jogo ou mapa foi liberado com a possibilidade de ganhar mais pontos.
Como se não bastasse, são vários personagens diferentes com ataques variados e que funcionam melhor em determinados mapas. Uma vez que você pega o funcionamento do jogo, ou melhor, a estratégia para progredir rápido, é aí que o “bicho pega”.

O sistema do jogo oferece uma gratificação muito rápida no início, para você sentir que está evoluindo e nunca se sentir empacado logo no começo do jogo. Como todas as partidas são jogadas online, jogadores são colocados de frente com outros do mesmo nível para deixar mais competitivo.
Conforme você progride no jogo, mais difícil fica visualizar esse progresso, o que pode irritar, mas você (eu) já está tão envolvido que mesmo isso não é razão para desistir. Mas existe um problema nessa matemática de progresso e esforço: as compras dentro do jogo.
Como eles ganham dinheiro
Você pode ter estranhado quando me viu falar que os jogos são gratuitos e a Supercell é uma das, senão a empresa mais lucrativa desse meio. O fato é que você pode pagar para comprar moedas do jogo com dinheiro de verdade, acelerando seu progresso.
Uma coisa o jogo faz muito bem, que é recompensar o esforço e tempo dedicado ao jogo, com prêmios diários e semanais, além de outros relativos ao esforço em algum campeonato. No entanto, essa recompensa passa a perder força com o tempo e quando alguém desembolsa alguma grana no jogo, consegue acelerar um progresso que levaria meses jogando-o sem gastar dinheiro.

Nesse ponto que a empresa mostra que para você estar entre os melhores, invariavelmente terá que tirar uns trocados da carteira. Justamente esse fator que eu esqueço e só lembro depois de ser fisgado pelo jogo.
Nunca gastei sequer um centavo em compras para acelerar o progresso de um jogo, porque na minha opinião o sentimento de realização se perde. De que adianta eu vencer um oponente se pra isso foi preciso gastar dinheiro?
Campeonatos profissionais e a “ironia”
O que mais me espantou na época em que jogava Clash Royale (instalei há poucos dias depois de Brawl Stars revigorar meu vício) foi o surgimento de campeonatos com jogadores profissionais.
Se você acompanha minimamente notícias parecidas, sabe que alguns jogos para computador já possuem campeonatos super bem remunerados e isso já faz um tempo que virou uma profissão de verdade.
Claro, o preconceito ainda existe e sabe se lá se vai acabar, mas realmente fiquei espantado de ver um jogo de celular sendo jogado em um ambiente profissional.
A questão é que as regras dos campeonatos oficiais estabelecem um limite de evolução no jogo. Ou seja, mesmo que você tenha gastado centenas de reais no jogo para evoluir seus personagens e ter ataques muito mais fortes que as defesas adversárias, tudo é nivelado.
Como a natureza do jogo em seu estado casual, e não competitivo, é um tanto quanto falha e favorece a quem está disposto a gastar mais “tempo” para evoluir, a proposta dos campeonatos é diferente. Afinal, ninguém quer ver um jogo entre o Real Madrid e o XV de Piracicaba.
No campeonato todas as possíveis vantagens injustas são tiradas e o jogo é nivelado. Essa é a única maneira de realmente favorecer os que tem mais habilidade e treinam bastante, conhecendo as variáveis do jogo e sabendo com quais personagens usar em cada situação.
Jogos de consoles e computador costumam ser pagos, e seus históricos reforçam a valorização do esforço e habilidade. A questão é que nos últimos anos esse cenário tem mudado de forma drástica, muito pela influência do mercado de dispositivos móveis e a facilidade de ganhar dinheiro mesmo sem cobrar por um jogo. Esse é o caso do fenômeno Fortnite, mas por incrível que pareça os jogadores gastam seu dinheiro apenas por mudanças cosméticas.
Houve um tempo em que os jogos eram feitos e pensados para serem jogados com mais atenção. Era preciso realmente se envolver com o jogo para conseguir evoluir uma história ou tornar seu personagem mais hábil. Talvez esse seja o maior argumento para os jogadores que cresceram com os consoles antigos.
A problemática da situação
Não vejo nenhum problema na maneira que a Supercell ganha seu dinheiro, afinal, é através de muito trabalho e pesquisa que você desenvolve um jogo envolvente e muito bem feito que possa interessar tanto a ponto de alguém gastar dinheiro nele, sendo que é possível jogar sem pagar absolutamente nada.
O problema está no que isso ensina crianças que se interessam pelo jogo e acabam pedindo de presente uns “trocados” para melhorar o desempenho no jogo e mostrar para os amigos o que “conquistaram”.
Os pais não percebem essa movimentação porque muitas vezes não tem noção alguma ou nunca jogaram. Cada vez mais as crianças e adolescentes se envolvem com esse sistema que difere bastante da realidade. Sim, é fato que podemos acelerar algumas coisas com dinheiro na vida real, mas afinal, de onde vem o dinheiro? Não é todo mundo que ganha na Mega Sena, então geralmente é proporcional ao esforço ou habilidade.
Antes de escrever esse post eu estava em dúvida se valeria a pena ou não, e confesso que não esperava esse desfecho. Meu intuito era focar mais nas estratégias do jogo mesmo, mas acabei simplificando e tomando uma atitude ao término desse post. No meio desse parágrafo, eu parei de escrever, desbloqueei meu celular e excluí todos os jogos que usam da mesma tática. Quem sabe agora eu consigo voltar a focar na minha produtividade.
Sou psicóloga e tenho acompanhado algumas crianças com esses hábitos que desenvolvem a dependência. Obrigada pelo artigo. Muito esclarecedor. Ajudou bastante.
Opa Rafael, obrigado por dividir as impressões, parabéns, meu filho apresenta comportamentos mais irritadiços, regredidos e agressivos quando joga esse tipo de jogos. o Brawl especificamente foi péssimo pra ele. Seu post reforçou impressões que já tínhamos e agora ele desinstalou, estimulamos outros jogos como de esportes etc, mas ficaremos de olho. Obrigado e parabéns!
Eu achei muito maravilhoso o que você escreveu. Li junto com o meu filho e estou proibindo esse tipo de influência horrorosa para o meu filho. Existem jogos muito bons e esse não vai fazer nenhuma falta. Obrigada Rafael essa porcaria nunca mais.
Rafael, engraçado né.. Também sou corredora.. será algo em comum entre nós, aki, Eu, você e o Fabio. Meu filho tem 08 anos, e há 02 meses tem jogado este jogo, venho observando, largou de lado, muito dos jogos que gostava.. Ontem, já tinha pensado em desinstalar este jogo, e agora, com depoimento de vocês, não resta dúvidas. Valeu muito seu post..
Poxa, fico contente em ter ajudado mais uma pessoa com esse artigo. A mudança vai ser um pouco complicada, mas é melhor agora do que ele ficar tanto tempo exposto a um jogo que possa dar uma visão tão diferente dos desafios que ele poderá encontrar na vida.
Se por acaso ler esse comentário e puder me dizer como encontrou esse post, eu agradeceria demais. Porque queria saber se por acaso você veio de algum review de tênis de corrida que faço ou foi direto para esse post.
Tudo isso é Pura Mentira eu jogo Brawl Stars a 1 ano. O Problema é? AS Mães miman as Criançãs dai Quando a Criança for jogar e ver aqueles Brawlers ela Vai falar “Olha quantos personagens legais intens legais vou pedir dinheiro pra minha mãe”. Então se a mãe for uma Idiota ele vai dar dinheiro a ele. Ou Seja a Culpa é da Criação dos filhos e não da SUPERCELL COLOQUE ISSO EM MENTE!
Achei fantástico seu texto e concordo em tudo. Tenho 39 anos, sou corredor kkkkk. Hoje arranjei uma guerra aqui em casa por proibir veementemente os jogos dessa linha aqui com meus filhos. Eu conversei com minha esposa sobre o antagonismo entre os difíceis desafios dos jogos de antigamente e a facilidade de méritos desses de celular. A vida de verdade nos mostra que os méritos vem depois das lutas árduas, e esses jogos formam uma pessoa mimada, que em duas ou três derrotinhas já gritam, se estressam. Foram esses sinais no meu filho que me mostraram a realidade e tomei essa decisão.
Você é um cara sábio. Tenha certeza disso.
Um abraço e um ótimo 2019.
Vou pras 12 horas de Piracicaba (ultramaratona) e meia do Rio, 22/6. (Sou do rj)
Caso queira, apareça.
Abç
E pensar que eu quase não publiquei esse artigo por ser “diferente” do restante. Seu comentário fez valer a pena não ter desistido, e fico contente que de alguma maneira possa ter servido de alerta. Realmente, os pequenos são os que mais sofrem porque não tem a capacidade de perceber isso. Espero que eles consigam se atrair por outros jogos que ofereçam desafios de verdade.
Quanto à minha sabedoria (haha), me resta agradecer e me esforçar para trazer um conteúdo diversificado por aqui. Até porque, nunca saberei quando vou atrair um corredor para outros assuntos, não é mesmo?
Abraço e obrigado pelo convite!